Tribo Tuyuca os Filhos da Cobra de Pedra
Os Tuyuka são gente da transformação, pois se originam da Cobra da Transformação. Única no início da viagem ancestral, a cobra, depois de alcançar o alto curso do rio de Leite (o Negro), se reproduz em várias outras, que tomam rumos distintos, seguindo pelos afluentes dos rios Negro e Uaupés. Os Tuyuka são os Filhos da Cobra de Pedra. No decorrer da viagem ancestral, esses povos e suas línguas se diferenciaram, alguns permaneceram como parentes entre si, enquanto outros se tornaram aliados.
Os Tuyuka são um dos povos da família linguística Tukano Oriental do Noroeste Amazônico, habitando a fronteira entre o Brasil e Colômbia.
Os Tuyuka autodenominam-se Ʉtapinopona ou “Filhos da Cobra de Pedra”. Este nome é usado em momentos cerimoniais.
Há um outro que é empregado coloquialmente: Dokapuara, cujo significado literal é “aqueles que socam e tingüijam” [este último verbo faz referência à utilização do timbó, veneno de pesca].
Os Tukano os chamam de Diikana ou Diikara (“gente argila”), de onde deriva a designação em Nheengatu (língua geral amazônica): Tuyuka.
Língua
Língua tuyuka
O tuyuka é a lingua dominante nas comunidades desse grupo do alto rio Tiquié e alto rio Papuri, usada nas reuniões comunitárias pelos homens e jovens, língua padrão para transmissão dos conhecimentos do grupo, o que restringe aos homens o acesso a certos conhecimentos e a certas formas de comunicação, próprias do seu grupo linguístico.
Mas o grupo local é também lugar de uma pluralidade de línguas faladas pelas mulheres que se casam com os homens tuyuka. No âmbito doméstico, a criança tuyuka fala pelo menos duas línguas, a do pai (tuyuka) e a da mãe (tukano, bará, dentre outras), tendo mais intimidade, inicialmente, com a língua da mãe. Esse fato garante a persistência do multilinguismo. Na socialização da criança deve-se levá-la a compreender que há mais de uma subcomunidade lingüística no seu campo social. E a, progressivamente, substituir a língua da mãe, pela do pai.
Multilinguismo na região do alto Tiquié
O multilinguismo característico do Alto Rio Negro e Uaupés combina, na região do alto rio Tiquié, falantes sobretudo das línguas tuyuka, tukano, bara, yebamasa, além do português e espanhol, conforme o grupo local se situe do lado brasileiro ou colombiano da fronteira, e do hupda (população Maku ou Nadahup).
No censo lingüístico realizado no ano 2000 no alto rio Tiquié observou-se comunidades onde são faladas cinco línguas, até comunidades onde são faladas doze línguas diferentes, resultado principalmente da exogamia linguística (regra que exige que os cônjuges sejam de diferentes grupos de descendência e, portanto, linguístico).
Tendências de tukanização e política linguística entre os tuyuka do alto Tiquié
Enquanto existe, na região do Uaupes como um todo, cerca de 20 mil falantes da língua tukano, as outras línguas desta família – tukano oriental – são faladas por populações menores, predominando em regiões mais limitadas, como é o caso da língua tuyuka.
Em algumas comunidades ou grupos locais tuyuka localizados em território de ocupação tukano, crianças tuyuka começaram a deixar de falar sua própria língua, usando mais o tukano. Os Tuyuka do igarapé Onça, assim como os do Cabari, estavam abandonando o uso da própria língua, substituída pelo Tukano. No caso do igarapé Onça, o processo começou a ser revertido com a participação dos moradores da comunidade na Escola Tuyuka, onde foram matriculados crianças e jovens. Já os Tuyuka dos igarapés Cunuri e do Pirá (na Colômbia) sempre mantiveram sua língua, embora habitando em áreas de predomínio da língua makuna.
Mesmo nas comunidades tuyuka mais centrais, devido à proximidade e influência da língua tukano, os jovens vinham usando mais a língua tukano entre eles. Quando alunos tuyuka frequentavam a escola de Pari-Cachoeira para cursar a segunda parte do ensino fundamental ou o ensino médio, antes oferecido apenas naquele local, voltavam para casa com essa forte preferência de usar o tukano entre si.
Durante algumas oficinas de política linguística no início na Escola Tuyuka (que surgiu no final dos anos 1990) os Tuyuka observaram outros aspectos que revelavam a diferença de poder entre as línguas tuyuka e tukano. No encontro entre três crianças tuyuka com uma tukano, as tuyuka tendiam falar tukano. Observaram claramente também como o plurilinguismo é muito mais comum nas gerações mais velhas do que nas mais jovens. O que pode ter relação com a tendência de tukanização e também com a influência forte do português em comunidades mais próximas dos centros missionários ou urbanos. É importante notar que processos de deslocamento lingüístico são bastante comuns na região, e já haviam relatos similares antes da atuação mais intensiva das missões e da escolarização (ver, por exemplo, Koch-Grünberg, [1909] 1967).
Caso as tendências de tukanização continuassem muito fortes, poderiam levar ao desaparecimento do tuyuka, como já aconteceu com muitas línguas indígenas no mundo. E também já aconteceu em alguns grupos locais tuyuka que se afastaram dos territórios de seus avós.
Nos últimos dez anos, os tuyuka do alto rio Tiquié estão conduzindo um processo de planificação lingüística, com diagnósticos comunitários freqüentes da situação da língua tuyuka em relação às demais línguas Tukano Orientais e ao português, e ordenando ações no campo da oralidade e da escrita, fora e dentro das escolas. Assumiram, no âmbito das comunidades do alto Tiquié e da escola Tuyuka, a política de estimular novamente a língua (em casa, na comunidade, em escolas etc.).
Localização
Os Tuyuka consideram a região da cachoeira Yurupari (localizada no alto rio Uaupés, na Colômbia) o seu território tradicional, pois foi ali que se deu a sua transformação primordial. Ainda hoje, em suas cerimônias, referem-se a essa área como fonte de vida e poder, como sua casa, de onde trazem os nomes para seus filhos.
A região ocupada hoje pelos Tuyuka compreende um trecho do alto rio Tiquié, uma área de interflúvio dos rios Tiquié e Papuri, que é drenada pelos igarapés Abiu (afluente do Tiquié) e Inambu (afluente do Papuri), e uma outra área de interflúvio do Tiquié com o igarapé Machado (Komeya em Tuyuka).
Os rios Tiquié e Papuri, por sua vez, são afluentes do Uaupés, um dos grandes formadores do rio Negro. A foz do Uaupés fica a montante da cidade de São Gabriel da Cachoeira, principal centro urbano da bacia do rio Negro depois de Manaus.
Apesar de ocuparem um território geograficamente contínuo, os Tuyuka dividem-se em dois subgrupos principais, separados por razões histórico-sociais específicas, entre os quais se verifica pouca proximidade social: o grupo do igarapé Inambu e o grupo do Tiquié.
Dados populacionais
Em revisão feita em 2008 (Cabalzar, 2009), considerando as fontes mais confiáveis, os Tuyuka estavam distribuídos em 19 grupos locais, cuja população variava entre 7 e 149 pessoas. A população total de dezoito desses subgrupos somava 988 pessoas, mas o número seguramente ultrapassava 1.200 pessoas, considerando os Tuyuka de Vila Nova (baixo Tiquié) e de povoados de outros grupos de descendência, onde há Tuyuka como aliados, em moradias mais ou menos permanentes (como Bela Vista, Pari-Cachoeira, São Paulo do Tiquié e San José del Timiya), sem contar aqueles que vivem em cidades – em São Gabriel, segundo levantamento (Lasmar et al., 2005), há 71 tuyuka.
Atualmente (2014), com programas do governo federal que desfavorecem a permanência das famílias indígenas em suas comunidades, como é o caso do Programa Bolsa Família (que exige que as mesmas façam deslocamentos de vários dias para acessar os recursos da bolsa), é possível que essa população esteja mais dispersa e a população tuyuka em seus próprios territórios tenha decrescido, principalmente no lado brasileiro. Esse levantamento está por ser feito. O que é certo é que há uma maior mobilidade das famílias entre suas comunidades, por mais distantes que sejam, e a cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Contexto regional
Os povos Tukano Orientais estão representados, alé
Os povos Tukano Orientais estão representados, além dos Tuyuka, por dezoito grupos linguísticos.
A região do Noroeste Amazônico, como um todo, assume o aspecto de um vasto sistema social formado por vários grupos lingüísticos inter-relacionados.
Os Tuyuka mantêm relações diversas com os outros povos Tukano: com alguns, estabelecem intensas trocas matrimoniais (principalmente com os Tukano, Bará e Yebamasa); com outros, esse tipo de união é vetado, pois são concebidos como irmãos que se separaram geograficamente no passado.
Atualmente, os Tuyuka habitam uma região distante de onde estão os povos Aruak, como os Baniwa do Içana e os Baré do rio Negro. Relações diretas com os Baniwa e Kuripako ocorreram no passado, quando os Tuyuka moravam no alto Uaupés. Guerras entre esses grupos, que também envolviam os Kubeo, determinaram o afastamento geográfico, com os Tuyuka retirando-se mais para o sul.
Hoje, as relações ocorrem tanto nos encontros na cidade de São Gabriel da Cachoeira, centro político-comercial e regional comum de serviços, quanto no âmbito do movimento indígena, ou seja, nos intercâmbios entre as escolas indígenas, nas reuniões e assembleias da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) etc.
Os sibs tuyuka
Os Tuyuka, assim como todos os outros grupos indígenas da região do alto rio Negro (incluindo os Maku e os Aruak da bacia do rio Içana-Ayari e do rio Xié) e do rio Pirá-paraná, são constituídos por grupos de descendência patrilinear nomeados e hierarquizados (os sibs ou clãs). O que mantém a estrutura é a noção de uma ancestralidade comum. Partindo do âmbito do grupo linguístico para seu interior, essa noção é permanentemente atualizada por meio de procedimentos rituais.
por Stephen Hugh-Jones, King´s College – Universidade de Cambridge. 2003.
Os grupos Tukano são patrilineares e exogâmicos, isto é, os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai e falam a sua língua, mas devem se casar com membros de outros grupos, idealmente falantes de outras línguas.
Externamente, os grupos são equivalentes mas distintos; internamente, cada um consiste em um número de clãs [N.E: também chamados sibs] hierarquicamente ordenados.
Os ancestrais desses clãs eram os filhos do primeiro ancestral Anaconda e a sua ordem de nascimento, que corresponde à ordem de emergência do corpo de seu pai, determina a sua classificação: os clãs de posição mais alta são coletivamente considerados “irmãos maiores” para aqueles de posição mais baixa. A posição do clã é associada a uma hierarquia, sendo ainda frouxamente correlacionada a residência: os clãs de mais alto grau tendem a viver em lugares mais favoráveis nas partes mais baixas dos rios, enquanto os clãs de menor grau freqüentemente vivem nas áreas de cabeceiras ou as partes mais altas dos rios.
A classificação do clã também tem os seus correlatos rituais: os clãs de posição mais alta, as “cabeças da Anaconda”, são “chefes” que patrocinam os principais rituais e controlam os ornamentos de dança do grupo e os Yurupari; os clãs de posição mediana são especialistas de danças e cânticos; abaixo deles são os xamãs; e o grau mais baixo é ocupado pelos clãs servos, a “cauda da Anaconda”, que por vezes são identificados com os semi-nômades Maku que vivem nas zonas interfluviais.
Essa hierarquia de papéis especializados e privilégios rituais fica muito evidente durante os rituais coletivos em que se recitam as genealogias e enfatizam-se as relações hierárquicas e de respeito. De modo mais sutil, essa hierarquia reflete-se também na vida cotidiana. Os habitantes de uma maloca comumente correspondem a um grupo de homens estreitamente aparentados, como os filhos do mesmo pai ou de dois ou mais irmãos, que vivem juntos com as suas esposas e filhos. Quando uma mulher se casa, ela deixa a sua maloca natal e vai morar junto com seu marido. Hoje, no lado brasileiro, as malocas geralmente não são usadas mais como residência, mas como casa de festa, de encontros e refeições comunitárias e cerimonial.
Os Tuyuka distribuem-se atualmente em quinze sibs. Alguns, não mencionados no quadro abaixo, ainda são lembrados por seu nome e por suas relações com outros sibs, mas estão provavelmente extintos. À pergunta “mʉ yabu wame?” (“qual é o nome de seu sib?”), os Tuyuka respondem, de fato, o nome do correspondente sib; o termo yabu é o que melhor se aproxima, em tuyuka, da noção de sib.
Habitações de ontem e de hoje
Os grupos locais tuyuka de hoje não se inscrevem mais nas fronteiras de uma maloca. Até 1970, ainda era comum no lado brasileiro (caso de São Pedro, Puniya e Ilha, acima de Cachoeira Comprida) a construção da maloca, usada tanto como residência por parte do grupo – geralmente de seu chefe e a respectiva família, com os filhos casados e alguns agregados – quanto como centro da vida local (em certos casos, supralocal) e em torno da qual orbitavam eventuais casas e sítios menores. Durante as cerimônias mais importantes do ciclo ritual anual, a maloca recebia pessoas de vários lugares, entre parentes da mesma língua e aliados. Para obter mais informações sobre essas cerimônias, ver Ritual (na seção Etnias do Rio Uaupés).
Podemos atribuir as mudanças que se processaram entre os vários povos da região, em certa medida, à intervenção contundente dos missionários salesianos, por exemplo na insistência dos padres no abandono da maloca. Entretanto, essa interferência não se deu por igual. Nos povoados tuyuka localizados na Colômbia, as malocas continuaram a ser construídas, uma vez que a presença de salesianos era ínfima e a atuação dos missionários javerianos foi tardia e branda, iniciada na década de 1970. Mas mesmo lá se verificou o advento do “povoado”, isto é, a ruptura da maloca como moradia comum a todo o grupo de parentes (patridescendentes) co-residentes e sua dispersão em casas familiares.
As malocas foram e continuam sendo construídas por trabalho comunitário e nelas se realizam os rituais e cerimônias do grupo local (caxiris, dabucuris etc.). Entre os Tuyuka que vivem no Brasil, a ausência da maloca gerou dificuldades, uma vez que as práticas rituais, que nela tinham seu espaço por excelência, continuaram sendo realizadas. Foi preciso construir outros tipos de casa, que preservassem algumas estruturas necessárias para a prática das danças rituais.
Passado o período mais intenso da atuação missionária, as malocas voltaram a ser construídas, agora como centro de rituais e de convivência do grupo local, com a realização de refeições comunitárias, reuniões e assembléias das associações, encontros e hospedagem, além das festas tradicionais.
Em 1995, foi feita uma maloca em Cachoeira Comprida, que passou a ser o centro ritual dos Tuyuka por vários anos. Em São Pedro antigo, Pikõroaburo, havia uma palhoça que depois foi adaptada para maloca. Uma outra foi construída posteriormente, em Mõpoea ou São Pedro novo.
Hoje no Tiquié, em ambos os lados das fronteiras nacionais, os grupos locais são formados por vilas de casas, com uma casa comunitária e algumas outras benfeitorias, como prédio da escola, posto de saúde e capela. No alto Tiquié, as malocas estão presentes em todos eles, sendo algumas habitadas no lado colombiano, mas junto com outras casas.
Subgrupos e grupos locais
Os Tuyuka vivem hoje em quatro subgrupos/territórios. Separados por razões histórico-sociais específicas, cada subgrupo ocupa hoje um território ou trecho de rio diferente. Entre esses diferentes subgrupos não existem relações permanentes ou estreitas, porque estão afastados geograficamente. Internamente a cada um destes subgrupos prevalecem os parentes tuyuka, com intercâmbios rituais e predomínio da própria língua.
1. Subgrupo do igarapé Inambu, rio Papuri
Nessa área localizam-se os sibs tuyuka de mais alto nível hierárquico (ver item abaixo sibs tuyuka). Ao longo do processo migratório tuyuka, eles permaneceram na região do alto rio Papuri, enquanto outros se deslocaram para o rio Tiquié. (Ver narrativa mitohistorica) São oito povoados, sendo que seis deles estão no Inambu (igarapé da margem direita do alto Papuri), um povoado no rio Papuri propriamente dito, e o último no Tiquié (atual missão de Trinidad na Colombia).
Ciclo ritual
O ciclo anual é pontuado por uma série de festas coletivas, cada uma com seus cantos, danças e instrumentos musicais apropriados, que marcam eventos importantes do mundo humano e natural – nascimentos, iniciações, casamentos e mortes, a derrubada e o plantio de roças e a construção de casas, as migrações dos peixes e pássaros, e a disponibilidade de frutas silvestres e outros alimentos colhidos. Essas assembléias rituais são denominadas “casas”, termo que significa ao mesmo tempo um evento ritual, um grupo de pessoas e um mundo simbólico.
As festas assumem três formas básicas: caxiris (festas de cerveja), dabukuris ou intercâmbio cerimonial, e os ritos de Yurupari envolvendo flautas e trombetes sagrados. Os caxiris são fundamentalmente ocasiões sociais quando uma comunidade convida os seus vizinhos a dançar e beber caxiri, às vezes como um agradecimento pela sua ajuda na abertura de uma roça ou na construção de uma casa nova, às vezes para marcar a nomeação de uma criança, o casamento de uma mulher, ou a etapa final de iniciação dos meninos, e às vezes somente por divertimento e reforço dos laços sociais. Os convidados são os principais dançarinos, e em troca de suas danças, os anfitriões lhes oferecem grandes quantidades de caxiri preparado pelas suas mulheres.
Com cocares de penas e outros ornamentos, os dançarinos dançam a noite inteira em volta do recipiente (cuja forma é semelhante a uma canoa) de caxiri, que constitui o foco central da celebração; é uma questão de honra que todo o caxiri seja consumido antes dos visitantes partirem pela manhã. Há dois tipos de danças, ou relativamente lentas, no caso de danças formais em que os homens se dispõem em uma linha entrecruzada por mulheres, ou danças mais rápidas e menos formais em que cada dançarino dança sozinho, tocando um conjunto de flautas de pã como parte de um coro, e competindo com os outros para atrair a parceira de sua escolha. Entre essas sessões de dança, os anfitriões e convidados se sentam frente a frente e trocam presentes como coca e charutos, enquanto recitam as suas genealogias em cânticos coletivos conduzidos por um especialista. O kumu se senta à parte, soprando encantações sobre cuias de coca, tabaco e ayahuasca; então as oferece aos participantes para protegê-los e permitir aos dançarinos que vejam e experimentem em suas danças as viagens dos primeiros ancestrais e os eventos míticos que os seus cantos e cântico relatam.
Os caxiris podem envolver comunidades de irmãos e cunhados, já os dabukuris são, sobretudo, ocasiões que celebram e reforçam os laços de matrimônio e afinidade. As dádivas são dadas em nome de um homem para seu cunhado ou sogro: no mito barasana da origem do dabukuri, cujos personagens são Yeba Yamira (ver item “Aspectos cosmológicos”), a dádiva era do Yeba para seu sogro Anaconda Peixe. O ritual começa com a chegada dos convidados ao anoitecer. Tratados como estranhos e inimigos potenciais pelos seus anfitriões, eles não entram na maloca, dançando e cantando por iniciativa própria do lado de fora. De manhã, eles desfilam dentro da maloca vestidos com elegância e soprando trombetes de cerâmica ou embaúba. Apresentam suas dádivas aos seus anfitriões e então iniciam uma dança que continuará o dia inteiro e a noite também. Os anfitriões se mantém distantes, continuam lhes servindo caxiri, mas enquanto o dia vai se passando, eles se misturam cada vez mais com os convidados, dançando e cantando junto com eles, quebrando assim as barreiras que foram estabelecidas, de forma dramática, no começo do ritual. Pela manhã, quando a dança termina, convidados e anfitriões comem em uma enorme refeição comunal, como se fossem uma comunidade única e integrada.
Esses intercâmbios têm uma dupla lógica e movimento: a curto prazo, os convidados dançam e oferecem peixe ou carne em troca do caxiri fornecido pelos anfitriões; a longo prazo, as comunidades trocam um tipo de produto por outro – peixe por carne ou carne por peixe – e alternam os papéis de anfitrião e convidado. Ambos os casos estão relacionados a matrimônio, o primeiro refletindo a troca de carne ou peixe por produtos de mandioca (o beiju e o caxiri) entre marido e mulher; o segundo refletindo a troca de diferentes tipos de mulheres entre os grupos ligados por inter-casamentos. Em termos cosmológicos, essas trocas estão intimamente ligadas aos ciclos de procriação e à disponibilidade sazonal de espécies de peixes e animais. As danças remetem não apenas às dramatizações e movimentos relativos a peixes e pássaros migrantes, como garantem a fertilidade continuada da natureza e a disponibilidade de espécies das quais dependem.
Os rituais envolvendo os instrumentos musicais sagrados de Yurupari são a expressão mais plena da vida religiosa dos índios, pois englobam e sintetizam vários temas-chave: ancestralidade, descendência e identidade grupal, sexo e reprodução, relações entre homens e mulheres, crescimento e amadurecimento, morte, regeneração e integração do ciclo de vida humano com o tempo cósmico. Em relação de complementariedade com os dabukuris, esses rituais são concernentes à identidade masculina e às relações intra-grupais em oposição ao casamento e às relações inter-grupais; do mesmo modo, dizem respeito à fertilidade das árvores e plantas em oposição aos ciclos de vida dos animais.
As flautas e os trombetes de tronco de palmeira pertencentes a cada grupo são uma entidade ao mesmo tempo única e múltipla: o ancestral do grupo e seus ossos aos pares, que são também seus filhos; e os ancestrais dos clãs componentes do grupo. Quando os instrumentos estão juntos e são tocados, o ancestral volta à vida, de modo que aqueles que os tocam assumem as identidades dos ancestrais clânicos e entram em contato direto com seus respectivos pais (originários). Esse processo anula a separação vigente entre passado e presente, mortos e vivos, ancestrais e descendentes, restabelecendo a ordem primordial dos mitos de origem. Os ritos normalmente envolvem um clã ou o segmento de um clã, que age como um grupo isolado e assim pode estabelecer a sua identidade enquanto unidade coletiva indiferenciada em contraposição ao mundo de fora, mas segmentada internamente por uma hierarquia ordenada.
Os instrumentos Yurupari somente podem ser vistos e manuseados pelos homens adultos. De acordo com os mitos, originalmente eram as mulheres quem possuíram as flautas enquanto os homens se encarregavam do processamento da mandioca e outras tarefas femininas. Os mitos acrescentam outro detalhe importante: quando as mulheres tinham a posse das flautas, os homens menstruavam e, quando tiraram as flautas delas, fizeram com que as mulheres menstruassem. Esses mitos, e os rituais que os dramatizam, podem ser entendidos como um discurso complexo e ambíguo sobre os respectivos poderes e capacidades de homens e mulheres, tal como aquele que se refere aos poderes xamânicos femininos, já mencionados. Isso implica que os órgãos reprodutivos e as capacidades reprodutivas complementares de homens e mulheres, isto é: as suas “flautas”, são simultaneamente idênticas e opostas, iguais e desiguais, invertidas e equivalentes.
Há dois tipos de ritual de Yurupari, um evento anual mais sacralizado e elaborado que marca o começo do ano, e o outro realizado periodicamente durante o ano para marcar a maturação de diferentes espécies de frutos de árvores. No segundo, os homens de uma comunidade presenteiam os de uma outra – geralmente os seus irmãos – com grandes quantidades de frutos silvestres, trazendo-os para o interior da casa acompanhados dos sons berrantes dos trombetes enquanto as mulheres e crianças permanecem atrás de telas nos fundos. Ao anoitecer, as telas são removidas e as mulheres voltam a se juntar aos homens. Eles dançam a noite inteira até amanhecer e então distribuem os frutos entre os presentes.Os mais grandiosos ritos de Yurupari, quando instrumentos diferentes e mais sacralizados são tocados, estão vinculados aos movimentos do sol e da constelação de Plêiades, realizando-se no final do verão e começo da estação chuvosa, que é a época em que abundam os frutos do mato. Eles elaboram ainda mais os temas de crescimento, maturação e periodicidade, bem como a integração entre os ciclos temporais humanos e cósmicos, mas aqui o enfoque imediato está no crescimento e amadurecimento de jovens que passam por um processo de iniciação que os conduz a sua integração como adultos no grupo.
No começo do ritual, os meninos são apartados de suas mães e trazidos para a extremidade masculina da casa, longe da vista das suas mães, que são confinadas na parte traseira. Sob o cuidado de guardiões rituais e um kumu oficiante, recebem ayahuasca para beber e são-lhes mostrados os instrumentos Yurupari pela primeira vez, enquanto eles ficam sentados imóveis e agachados como fetos no chão. À medida que os instrumentos são tocados sobre as suas cabeças, corpos e genitais, os rapazes são chicoteados pelos kumu nos seus corpos e pernas, ações que transmitem a vitalidade e as forças espirituais dos ancestrais e fazem com que os meninos cresçam resistentes, fortes e viris. Os homens dão então um banho nos meninos junto com os instrumentos no rio, despejando água das flautas sobre as cabeças dos iniciados. Essa ação alude ao ancestral Anaconda vomitando as primeiras pessoas da sua boca – e também ao primeiro banho dos bebês depois de nascer, como descrito anteriormente. Mas dessa vez o nascimento é um renascimento orquestrado pelos homens mais velhos e, como o ancestral Anaconda que entrou no mundo através da “porta da água” no Leste, os iniciandos renascidos agora entram na casa pela porta dos homens. No final do ritual, os iniciandos permanecem em reclusão por um mês em um compartimento especial longe da vista das mulheres. Rigidamente supervisionados pelo kumu, eles tomam banho todos os dias, observam uma dieta rigorosa e aprendem a fazer cestos. A reclusão termina com uma grande dança. Como sinal de que estão prontos para se tornarem maridos e pais, os iniciandos presenteiam com os seus cestos as suas parceiras femininas, que pintam os corpos deles com tinta vermelha em retribuição.
Como muitos ritos de iniciação, este é repleto de símbolos de morte, renascimento e regeneração. No começo do ritual, os meninos são pintados de preto e ritualmente “mortos” com doses de rapé de tabaco; após seu renascimento no rio, são mantidos em reclusão como bebês recém-nascidos, então emergem para serem pintados de vermelho. No mito associado ao ritual, Yurupari, na forma de anaconda, engole os iniciandos, os digere dentro de sua barriga (cujo equivalente no ritual é o período de reclusão), então os devolve a seus pais, vomitando-os como ossos. Para puni-lo, os pais incendeiam Yurupari para que ele morra. Mas ele não morre: sua alma sobe ao céu e de suas cinzas nasce uma palmeira, protótipo das frutas da floresta e matéria-prima dos instrumentos Yurupari.
Como na agricultura de coivara, na qual a fertilidade e a vida humana vêm da queima anual da floresta, esse conjunto de mito e ritual significa que vida e morte se sucedem como as estações, que os humanos mortais alcançam a imortalidade através de seus filhos, que a periodicidade das mulheres é como a das estações, que o crescimento dos homens e das árvores resultam de um único processo, e que, no final das contas, a fertilidade dos seres humanos e do cosmos estão interligadas em um grande sistema. Ao expandir a maloca a proporções cósmicas, ao abolir as separações entre os seres humanos e o mundo dos espíritos, e ao articular as capacidades reprodutivas de homens e mulheres, os rituais de Yurupari englobam e colocam em movimento boa parte da cosmologia acima esboçada.
A Escola Indígena Tuyuka-Utapinopona
Sob a atuação dos salesianos, que buscavam as crianças em seus povoados e as levavam para as missões, os Tukano incorporaram a educação escolar. A partir dos anos 1980, a educação básica (da 1ª à 4ª série) passou a ser oferecida pela rede municipal de escolas rurais, espalhadas por um bom número de povoados.
As freiras Filhas de Maria Auxiliadora, no entanto, continuaram, até os anos 1990, orientando os professores indígenas da região, que tinham em geral o primeiro grau completo. Não havia nenhuma especificidade no material didático e a ênfase no ensino religioso se mantinha. Ao concluir a 4ª série, a maioria das crianças, especialmente os meninos, era encaminhada ao colégio mais próximo (correspondendo aos antigos internatos dos missionários salesianos) para continuar os estudos até a 8ª série.
Como consequência de tal rotina, sobrevinha certo esvaziamento dos povoados durante o período letivo. Alguns grupos domésticos deslocavam-se inteiros para o centro missionário, onde mantinham uma casa. Nem todos, porém, constituíam roças aí, continuando a voltar ao povoado de origem para fazer farinha e buscar outros alimentos. Em alguns casos, uma família cuidava de meninos de diferentes famílias. A estada dos jovens nesses povoados/missões prolongava-se além do período de estudo, já que preferiam ficar ali com os companheiros da mesma faixa etária.
No Tiquié e no Pirá-paraná colombiano, o processo de escolarização em poucos centros – também construídos por padres católicos, mas de outras congregações – foi mais tardio, com início na década de 1970. Também nessa região há o esquema de afastar as crianças cada vez mais de seus povoados, à medida que avançam no estudo, até chegar a Mitú, capital do departamento de Vaupés. No país vizinho, ainda hoje existem internatos, a maioria são laicos. No Brasil, o fim do internato foi visto com insatisfação pelos índios, porque não haveria mais uma instituição para cuidar da alimentação e de outras necessidades dos jovens.
A partir de 1998, um projeto de escola indígena deflagrou importantes mudanças nas comunidades tuyuka do alto Tiquié, sobretudo no lado brasileiro. O contexto era o da crise entre os missionários católicos gerada pelo impasse quanto ao seu modelo de educação, à desestabilização socioeconômica resultante da corrida ao ouro da serra do Traíra, ao rápido esgotamento desse recurso e à emergência das organizações indígenas (em paralelo, à recente demarcação das terras do alto e médio rio Negro).
Em parceria com a FOIRN e com o ISA (Instituto Socioambiental), apoiados pela Rainforest Foundation da Noruega (RFN), quatro comunidades tuyuka do Brasil (São Pedro, Cachoeira Comprida, Igarapé Onça e Fronteira), com participação de comunidades colombianas vizinhas, juntaram-se e assumiram a tarefa de criar uma escola indígena autônoma e condizente com os projetos e decisões das comunidades.
A Escola Utapinopona-Tuyuka adotou a própria língua na alfabetização, e como língua de instrução nos diversos ciclos. A partir de 2001, estenderam o ensino para além da 4ª série (até então o ensino fundamental completo só estava disponível em Pari-Cachoeira). Em consequência do intenso movimento político liderado liderado a partir da comunidade de São Pedro, quase todas as famílias que mantinham os filhos em Pari-Cachoeira retornaram e aderiram à Escola Tuyuka.
Assim teve início um período de relações mais ativas e constantes entre os povoados tuyuka, com frequentes encontros, reuniões, oficinas temáticas e assembleias relacionadas com a escola, contatos diários através de radiofonias recém-instaladas, maior facilidade de transporte com os motores e a gasolina do projeto. Participaram ativamente os moradores do igarapé Onça, que até então mantinham poucos contatos com os Tuyuka de Caruru acima. Esse grupo passava por um processo de tukanização lingüística (i. e. usam mais a língua Tukano que a própria língua), já que, há três gerações, habitava uma área de predomínio tukano próxima de Pari-Cachoeira e São Domingos.
Em boa medida, a Escola Tuyuka inverteu os princípios da escola missionária. Isso se deu a partir do momento em que fez uma série de escolhas: adotou a língua indígena; para incentivar a transmissão das tradições, aproximou crianças e jovens dos mais velhos, em contraposição ao afastamento, geográfico mesmo, entre as diferentes gerações; e passou a tratar de assuntos e temas locais, de interesse das diversas comunidades, em contraste com o currículo missionário completamente exótico aos índios do Tiquié.
Oito anos após o seu início, o movimento político dos Tuyuka vai além da escola. Um dos efeitos da Escola foi conferir visibilidade aos Tuyuka no âmbito regional (alto rio Negro). São Pedro, a principal comunidade tuyuka do lado brasileiro, passou a sediar importantes encontros, com a participação de pessoas de regiões como Içana, Pirá-paraná e São Gabriel. Os Tuyuka também começaram a viajar mais e a participar de reuniões e encontros em outras localidades. Enfim, vivenciaram uma abertura maior para o exterior.
Atualmente a Escola passa por novas mudanças, a região é agitadas por outros movimentos, há maior mobilidade das famílias, outras transformações…
Fontes de informação
- Cabalzar, Aloisio (2009) Filhos da Cobra de Pedra. Organização e Trajetórias Tuyuka no Rio Tiquié. São Paulo: Editora da Unesp/ISA/Nutti.
- Dias Cabalzar, Flora (2011) Até Manaus, até Bogotá. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentos. São Paulo: Tese de doutorado, PPGAS/USP.
- Dutra, Israel Fontes (2010) Xamanismo Utãpinõponã-Tuyuka. Princípios dos rituais de pajelança e do ser pajé Tuyuka. São Paulo: Dissertação Mestrado, PUC-SP.
- Rezende, Justino Sarmento (2005) Escola indígena municipal Utãpinopona – Tuyuka e a construção da identidade tuyuka. Campo Grande: Dissertação Mestrado, Universidade Católica Dom Bosco.
- Rezende, Justino Sarmento (2010) Educação na visão de um Tuyuka. Manaus: Faculdade Salesiana Dom Bosco.